O telefone tocou, rompendo a tranquilidade daquela tarde comum. Do outro
lado da linha, um homem perguntava pelo senhor Xavier. Educadamente, ela
explicou que deveria haver algum engano. “O
senhor ligou para uma loja, não há ninguém com esse nome aqui.” Desligou e
retomou seus afazeres, absorta em seus pensamentos.
Ele, porém, descobriu-se inquieto com dois problemas. O primeiro era como
obter o número correto do tal Xavier e resolver todas as pendências ordenadas
por seu patrão. O segundo e, mais relevante em sua opinião, era saber quem era
a dona daquela voz!
Nos dias que se seguiram, só conseguia pensar na voz da moça, ou melhor,
na moça da voz. Como ela seria? Que cheiro teria? De que cor seriam seus olhos
e seus cabelos? Encheu-se de coragem e ligou novamente. Ligou mais uma, duas,
várias vezes! E quantas foram necessárias até conseguir dobrar a mocinha de voz
doce a aceitar um encontro! Quase setenta anos se passaram e ele continua
apaixonado pela dona da voz! Daquele engano telefônico nasceram quatro filhos,
doze netos e cinco bisnetos.
A moça da voz, hoje uma senhora de olhar distante e perdido pela Doença
de Alzheimer, já não é capaz de reconhecer todos os filhos e netos e mal tomou
consciência de todos os bisnetos. Já não pode mais fazer nada sozinha. No
entanto, nunca se esquece dele.
Não, ela não se lembra da ligação por engano, tampouco consegue narrar
sua própria história. Mal lhe restam lembranças de quem ela é. Faltam-lhe quase
todas as palavras. Todavia, ilumina-se cada vez que ouve a voz daquele que foi,
e ainda é, seu grande amor, a única que ainda lhe parece familiar. Acalma-se
com sua proximidade e só caminha quando amparada por suas mãos. Já não sabe aonde
vai, mas se está com ele, sempre vai.
Como explicar um sentimento que sobrevive a despeito da perda de si
mesmo? Seria isso o amor, algo tão maior, tão sublime e tão pleno que não pode
ser esquecido? Como explicar a persistência dessa emoção mesmo quando as
sinapses neuronais falham a ponto de não se reconhecer? E tanta gente por aí
tentando racionalizar o amor...
Não se explica um sentimento capaz de iluminar a escuridão quase tangível
do apagar da mente, que se mantém audível no silêncio angustiante do calar das
palavras e que faz com que um senhor de quase noventa anos mantenha o viço
necessário para cuidar, zelosamente, de seu verdadeiro grande amor.
Talvez esse enigma nunca seja desvendado, mas, quem sabe, o amor não seja
isso, essa força inexplicável que transforma um fatídico engano na única
certeza existente entre dois corações, ainda que suas lembranças estejam
soterradas pelos escombros do passar dos anos e das recordações.
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